Dercy e uma nação indignada

          Texto de Lúcia Rocha, publicado no jornal PÁGINA CERTA, em 2007.                


                         
















      “Em primeiro lugar, a minha vida no século passado era uma, e mudou completamente neste, está me assustando. Não havia essa prostituição da mulher, não havia prostituição dos homens. Está virando tudo viado, brinco na orelha. Isso tudo me afasta da vida. A educação é outra. A polícia é outra. A Justiça não existe, mãe mata filho, filho mata mãe. Isso tudo me desanima de viver...”  A frase é da atriz Dercy Gonçalves, que este ano fará cem anos de idade.                                             
     Com certeza, alguém que nasceu há cem anos assusta-se com o que está acontecendo, com as manchetes de jornais, com as reportagens que estão pautando os telejornais, inclusive o Jornal Nacional, que mudou completamente o seu perfil, transformando-se no extinto Aqui Agora. E vem perdendo a audiência para pessoas sensíveis, depressivas, sem auto-estima, em resumo, as pessoas que se abatem com notícias ruins.
       Para falar a verdade, desde que foi publicado sobre a pílula da farinha, que aparece ‘escândalos’ em diversas áreas, sem precisar citar uma especificamente. Nós, leitores, telespectadores, ouvintes, internautas, eleitores, consumidores, clientes, enfim, estamos a cada novo fato, perdendo nossa capacidade de nos indignar.
       E isso é grave, porque perdemos também a fé nas pessoas, instituições, políticos, nas empresas ditas sérias, que cada vez procuram levar vantagens com seus consumidores. Sinceramente, a informação de que uma grande indústria farmacêutica, há alguns anos, fabricava pílulas de farinha, em vez de anticoncepcionais, driblando suas consumidoras que, de uma hora para outra, ficaram surpresas com uma gravidez não esperada ou indesejada, é de um absurdo indescritível.
       Políticos e jornalistas se vendem em mensalões e mensalinhos, juízes e ministros de tribunais de justiça vendem sentenças a bandidos e infratores, filho que mata pai e/ou mãe; pai que mata filho, estupra filha, enteada; político e polícia que mata e rouba; aluno que não mais obedece a disciplinas e regras na escola, filhos que largam pais em abrigos, comprometendo a família como um todo, enfim, fazendo-nos crer, que vivemos uma grande mentira, que estamos num mundo de disfarces, fingimentos e simulações.
       Afinal de contas, onde estão os códigos de ética e os valores morais que nos faziam acreditar que ser honesto ainda era o melhor caminho para atingirmos uma sociedade justa e ordeira?    
   
* A comediante Dercy Gonçalves faleceu em 2008.

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