Lahyre Rosado


Por Lúcia Rocha
Publicado em 2002, na Gazeta do Oeste 


Lahyre Rosado


Laíre, Ilná, Lairson e Laete com os pais:Lahyre e Francisca

Francisca, Lahyre e Ilná

Lahyre já octagenário

              
                Entrevistar o doutor Lahyre Rosado, sempre foi um desejo, desde os tempos de estudante de jornalismo, em Natal, quando frequentava sua casa, no bairro Petrópolis, acompanhada da colega de turma e sua filha, Ilná, também advogada. Isso há uns quinze anos, quando entrei na UFRN. Homem sábio, que exerceu a medicina numa Mossoró que só tinha um médico, o doutor Almeida Castro.
        Algo me marcou nossas conversas. Já que ele praticara a medicina natural, uma vez quis tirar uma dúvida. Queria saber por que minha garganta doía quando comia melão. Do alto de sua sabedoria explicou que ‘quem tem problema de garganta ou osso, não pode comer melão’. Pronto! Resolvi dois problemas de uma vez. Nunca mais tive dor de garganta e curei uma bursite.
         Prometi que um dia o entrevistaria contando essas coisas. Acabei de fazê-lo agora, quando ele está lúcido com noventa e dois anos de idade, mas suas receitas infalíveis ficaram no fundo do baú de memórias.
         Reencontro doutor Jerônymo Lahyre de Mello Rosado e sua esposa, dona Francisca Gurgel Frota Rosado, de volta a Mossoró, ela enferma, após acidente durante assalto em Natal. Nossa entrevista vira uma conversa, onde ele conta que conheceu alguns presidentes da República, fala sobre clonagem humana, o desenvolvimento da cidade, conta que pertence a uma geração de cinco médicos: o avô, seu pai, ele, três filhos – Laíre, Laete e Lairson – além do neto, David, cirurgião vascular, com residência médica no Rio de Janeiro, exercendo a profissão em Natal. Fala de Mossoró como se ainda estivesse em Natal e, de vez em quando, solta: “Lá em Mossoró”.
          Define-se como um camarada que não sai de casa, que conversa pouco: “Nunca mais gostei de rádio. Acho que já passei da conta”, brinca.  Em Natal o neto Dave – lê-se Dêive – filho de Ilná, lia para o avô diariamente as notícias dos jornais e da Internet, além de bulas de remédios. Dave que fazia a ponte com o mundo exterior ficou em Natal. Mas morre de saudades do avô: “Diariamente eu o visitava e bom era ouvir os comentários dele após contar as notícias mais importantes do Brasil e do mundo. Cada vez que eu entrava no seu quarto ele perguntava logo as novidades. Era como numa novela e cada dia eu contava um novo capítulo”, conta Dave.  “Amo meu avô pelo que representa na minha vida. Sempre gostei de conversar com ele, uma pessoa íntegra, inteligente, culta e com uma visão muito ampla da vida. Torce sempre por mim e faz de cada vitória minha uma sua também. Ele mora no meu coração”, emociona-se o neto engenheiro.  
           Doutor Lahyre nasceu em 18 de setembro de 1910, é único filho homem do médico Jerônimo Rosado Filho e da professora Ilnah Sousa Mello Rosado. Seu pai era o primogênito de Jerônimo Rosado - seu Rosado - por quem foi criado após perder o pai prematuramente. Então, viveu em meio aos tios Dix-sept, Dix-huit, Vingt, Vingt-un, num tempo em que Mossoró era uma cidade pequena, pacata, carente de tudo: “Água, nem se fala, as ancoretas, as pipas... Seus problemas se resumiam a água e energia. Se tivesse isso, tudo estaria resolvido”, resume.  A Mossoró de hoje, ele lembra que desde criança ouve dizer que é a cidade que mais cresce no Nordeste: “Hoje eu digo, só faltava água e energia, aí disparou. Agora vem Medicina, já tem Agricultura  - Esam -  já tem a universidade – Uern. Pois é, Mossoró vai ser uma cidade grande. E pode ser até uma grande cidade, quem sabe? Depende dessa velocidade que ela vai. Tem também a Petrobrás...”, completa ele que morou uns tempos em Macau e outros em Catolé do Rocha: “Que eu me lembre, só”, ri.  Esqueceu Natal.  
           Calmo, culto, inteligente, fino, de educação polida, poliglota, vernáculo e bem humorado, doutor Lahyre conta que estudou farmácia “Pelas contingências do tempo”, na Faculdade de Farmácia do Recife, na década de 1930. Formou os três filhos homens médicos longe de Mossoró e, talvez por isso, ao iniciar o nosso papo ele foi logo soltando: “Mossoró vai ter faculdade de Medicina”. Faz uma pausa e depois completa: “Dona Sandra que puxou o cordão”, diz se referindo a nora, deputada estadual, Sandra Rosado, autora do projeto de lei que cria a Faculdade de Medicina de Mossoró, casada com seu filho mais conhecido, o deputado federal, doutor Laíre Rosado Filho.
           Doutor Lahyre sente-se satisfeito com os netos que concluíram curso superior e dos que estão cursando. O semblante muda. Um riso alegre de quem tem a certeza do dever cumprido. Lembra que formou todos os filhos com a ajuda de dona Francisca: “Se não fosse ela...”, diz pensativo.  “Sozinho eu não podia”, reconhece. “Mas minha filha com muita garra se formou e também os seus três filhos”, gaba-se.
                Ilná garante que o pai sempre esteve presente na educação dos filhos: “Embora mais a cargo de minha mãe, ele aconselhava sobre a vida, mas nunca impunha sua opinião. Durante o ano letivo se interessava pelos assuntos escolares dos filhos e estava sempre pronto a nos ajudar. Juntava durante o ano inteiro amostras grátis de remédios para distribuir nas férias em Tibau com pessoas carentes que faziam romaria para se receitar com ele”,  lembra a única filha mulher.
               Depois de trinta e oito anos residindo em Natal, doutor Lahyre  explica o retorno: “Voltei agora por uma emergência. Não tenho mais amigos aqui. Já se foram. A maior parte dos conhecidos e amigos já ‘viajou’. Então, tem a família”, comemora.  Diz que é um homem de poucos amigos: “Não era cheio de muitas amizades, não! Era meio cético, meio esquisito, mas tinha alguns amigos. Agora tem uma coisa na minha vida que acho muito importante. Nunca briguei com ninguém. Nem nunca ninguém se atreveu a brigar comigo. É uma coisa boa, limpa”, regozija-se.    
               Sabe que a rua onde morou durante muito tempo, a Bezerra Mendes, em frente ao Mercado Municipal, não tem mais casa: “Chamava-se Rua das Flores. Os vizinhos iam para a calçada conversar. Depois tudo virou comércio. Acabou-se”, reclama.
           Lamenta também as tragédias da família: perdeu o pai aos treze anos de idade; a mãe, aos dezessete; o sobrinho Carlos Augusto, falecido ainda criança, desidratado: “Tão gordinho, apliquei muita injeção na barriguinha dele. Mas não adiantava nada”, recorda. O acidente aéreo que ceifou a vida do tio e amigo de infância, o então Governador Dix-sept Rosado foi traumático para ele, pois eram bastante unidos. Um acidente automobilístico encerrou a vida do filho caçula Lairson, com quase trinta anos de idade; e mais recentemente o neto, Vingt Neto, com pouco mais de vinte anos.      
          Quando terminou a faculdade doutor Lahyre veio direto para a farmácia do tio Duodécimo Rosado, localizada à Rua Coronel Vicente Sabóia, onde atuou por trinta anos e guarda boas recordações desse tempo: “Eu era muito ocupado e nesse tempo a farmácia não tinha feriado. Abria até no dia de Santa Luzia. A procissão passava em frente a farmácia, o comércio todo fechado e a farmácia aberta. Quando a procissão apontava na rua o pessoal dizia: ‘Feche a porta!’. Quando passava diziam: ‘Abra a porta!’.  Ela ficava aberta até às 21 horas. Meu tio queria assim, né?” ,  graceja.         
           Nesse tempo Mossoró não tinha hospital, ambulatório, nada disso: “Tudo era resolvido na farmácia com medicamentos de manipulação. Só havia um médico em Mossoró, Almeida Castro”, conta. A doença mais comum era desinteria - diarréia - em criança. Depois surgiu a tuberculose, mas logo apareceu a cura: “A tuberculose era uma doença horrorosa. O doente sabia que a doença era grave, mas enquanto tomava a medicação, tinha uma esperança, pensava que seria curado, ficava mais alegre. Mas não tinha jeito”, lamenta.    
         Hoje ele ri da Aids. Porque é uma doença que não tem sintoma: “De vez em quando ouço: ‘Fulano é portador do vírus da Aids’. Eu pergunto: quais são os sintomas desse negócio? Eu não sei. Não sei se os médicos têm uma idéia do que a Aids faz na gente. Porque ninguém sabe o que é. Eu estava conversando com meu filho Laete e falei que um dia poderia aparecer um remédio para curar o câncer. Ele disse: ‘Aí aparece outra doença pior’. Essa Aids tem muita propaganda alertando. Tem durado muito. Parece que é um enfraquecimento no organismo. Agora, de onde veio, não sei”, comenta.       
         Avesso a política conta: “Uma vez me empurraram e fui eleito vereador”, foi na década de 1930, durante um golpe de estado com Getúlio Vargas.  Mas o mandato foi cortado na metade. Não quis retornar depois.  Conheceu Getúlio Vargas quando este veio a Mossoró com seu guarda-costas, Gregório. Hospedaram-se na casa onde hoje reside a viúva do seu tio Dix-neuf. Esteve com Juscelino Kubitscheck e João Goulart num banquete oferecido na ACDP: “Depois teve o doido do Jânio Quadros, com aquele olhar vesgo”,  que em campanha eleitoral, participou de um comício numa noite chuvosa na cidade.                       
          Uma neta, Larissa, filha de Sandra e Laíre, acaba de ser eleita deputada estadual e ele comenta satisfeito: “A mãe dela é deputada agora noutro degrau. Doutor Laíre deixou. Daqui uns dias termina o mandato e estará desligado completamente”, acredita, sem saber dos planos do filho.   
          Sobre o presidente eleito Lula: “É um sujeito muito voluntarioso, persistente e preparado, também. É um camarada que tentou uma, duas, três e aí me lembro daquele ditado ‘água mole em pedra dura tanto bate até que fura’. Taí, Lula. Tem muita coisa esquisita. Ele não tem faculdade, mas dizem que tem certo preparo. Vai ficar muita gente desempregada... E vai empregar muita gente que está desempregada”, adverte.       
          Com problemas de osteoporose e na visão, doutor Lahyre não vê mais televisão, diz que enxerga pouco: “Tenho duas cataratas do Niágara”, brinca. “E a vista cada vez vai fechando. Eu peço a Deus que dê para eu enxergar ao menos dentro de casa até morrer. Não me aperreio, não! Se meu destino é esse... Ninguém sabe como vai morrer ou se fica sabendo de antemão”, brinca.  Lembra que viu entrevista de um geriatra na televisão dizendo que a média dos antigos romanos era de vinte anos de idade: “Tão pouquinho, não dá nem para tomar gosto. Aí perguntaram: ‘Com que idade o senhor acha que começamos a envelhecer?’ Ele respondeu: ‘Depois dos trinta estamos deixando a vida’. Eu aperreei meus netos dizendo: ‘Vocês já estão descendo’, diz soltando uma boa risada.  “Já estão descendo a escada. Ah! Ah! Ah!”, continua.
               Ele fala também sobre clonagem humana: “Mas já estão fazendo até gente”, solta uma grande risada e depois fica sério: “Ah! Meu Deus, eu não sei como ficou a história daquele italiano que fez uma ovelha, não sei o quê”, esquece. Informado que nesses dias foi anunciado o nascimento do primeiro bebê clonado: “Mas não come, não bebe. Não vai, não! Isso aí, não dá para fazer, não! Já achei muita coisa quando fizeram nascer de proveta. Junta o germe masculino, o feminino, bota na proveta, quando dá-se fé: a fecundação. Pega o óvulo e implanta de novo na mulher. O útero toma conta. Até aí vai. Tá bom! Está compreensivo. Mas esse negócio aí... Tanta peça que a gente tem, tanta coisa... não dá!”, comenta negando aceitar.
         Longe das notícias no mundo diz que de rádio ele gostava de ouvir música e notícias: “Mas não boto mais, não! Botei muito, li muito. Por toda vida. Ah! Ah! Ah! O rádio não tem imagem, mas tem mais notícia do que a própria televisão, não é? Mas me desinteressei”. Informado que na emissora de rádio de seu filho Laíre, a FM 93, tem um programa político diariamente, que conta  com a participação do filho e do neto, o jornalista Cid Augusto, ele gosta da informação e diz: “Não escutei nenhuma vez. Eu podia me acostumar a ouvir rádio de novo. Tem mais notícia. Não se vê imagem, mas tem muito mais notícias. Cid tem a vocação do bisavô materno dele, Jeremias da Escóssia, fundador de O Mossoroense, juntamente com meu bisavô materno, Alfredo de Sousa Mello, que era português.       
        Leitor voraz, diz que lia tudo, romance, policial e cita autores franceses: “Gostava demais de ler, viu? Uma leitura variada. Meu pai gostava muito também. Não fui empurrado para gostar, não! O que essa cabeça aqui já leu...”, fica pensativo: “Meus olhos já podem pedir licença”, se entrega.                                        Além de farmacêutico, doutor Lahyre também trabalhou como inspetor escolar federal durante trinta e cinco anos. Ainda guarda de recordação o título da nomeação. A partir de 1938 trabalhou no Ginásio Sagrado Coração de Maria, o famoso colégio das irmãs, quando ali funcionava somente o primário. Desse tempo uma ex-aluna, hoje setentona, tem boas recordações do rapaz educadíssimo, que só andava de paletó, gravata e um sapato que parecia de borracha, pois entrava na sala de aula sem ninguém perceber: “Ele não perturbava ninguém, era o rapaz mais bonito da cidade e as alunas avançadas faziam comentários do tipo: ‘Esse homem é bonito demais. Quem dera poder dar um cheiro nele. Não tem namorada, né? Com quem será que ele vai se casar? Feliz a moça que se casar com um rapaz desses, pois tão fino e bonito...”, recorda.
         Doutor Lahyre acha graça porque Tibau se emancipou e hoje é cidade: “Tibau era um morro. Comecei a frequentar desde menino. Tibau eram umas casinhas de palha. E na beira da praia era bem   movimentada, tinha uns trapiches para estender as redes. Eu puxei muita rede...”, lembra.  O velho Rosado uma vez mandou até vaca para lá. Era muito complicado chegar ali, mas hoje tem todo um conforto”, encerrou o papo rindo porque nunca deu uma entrevista, essa foi a primeira da sua vida.
        Uma vez a filha Ilná, o entrevistou sobre Lampião em Mossoró. A entrevista foi publicada no O Mossoroense e depois na Coleção Mossoroense, em livreto, onde doutor Lahyre relata que cuidou da mãe doente, inclusive ficando com ela no sítio, munido de espingarda, quando o bando de Lampião entrou em Mossoró.   
  
 * Lahyre Rosado faleceu em Mossoró no dia 22 de agosto de 2003.

                

Comentários

  1. Lucia, Mossoró resgata sua história por meio de matérias como essa. Admiro Dr. Lahyre por sua história de vida e por haver conseguido, em uma época em que nossa cidade era tão incipiente na política, na economia e na cultura, dar prosseguimento aos estudos e formado parte de uma elite intelectual que via a cidade como um espaço coletivo em que sua vida se inseria. A cidade era vivida por seus habitantes. Dr. Lahyre é, certamente, um nome que enobrece Mossoró.

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